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Essenciais para pesquisa na Amazônia, parabotânicos correm risco de desaparecer

by Anderson

Essenciais para pesquisa na Amazônia, parabotânicos correm risco de desaparecer

Professora estima que existam menos de 20 desses técnicos e planeja curso para formar nova geração

Vista de cima, a Amazônia parece uma mancha verde uniforme entrecortada por rios, como se fosse uma coisa só ao longo dos seus mais de 5 milhões de km², mas quem percorre as florestas sabe que as paisagens mudam: há matas alagadas parte do ano, florestas de terra firme, igapós, igarapés, mangues, cachoeiras, praias de areia branca e até vegetação parecida com savana e Cerrado.

“Queria muito ver uma campina. Os colegas diziam: ‘calma, você ainda vai encontrar’. Levei dez anos para andar em uma. É linda. Fiquei uns cinco minutos só olhando”, diz o técnico de campo José Raimundo Ferreira, de 42 anos. Ele se refere a uma formação vegetal pouco frequente na Amazônia, com arbustos pequenos e finos sobre um solo de areia branca, no meio da floresta de terra firme.

José Raimundo, o Zelão, é um conhecido parabotânico – técnico que acompanha biólogos, ornitólogos, botânicos, entre outros pesquisadores, nas pesquisas de campo. Os parabotânicos abrem trilhas, têm conhecimento para identificar espécies vegetais e coletam folhas, frutos e sementes em qualquer canto da floresta.

“O parabotânico sabe onde encontrar as espécies que estamos procurando”, afirma a botânica Marta Regina Pereira, professora da Universidade Estadual do Amazonas (UEA).

Caminhando com sua equipe pela campina que Zelão localizou duas semanas antes, no interior de uma floresta do Amazonas inexplorada até então, Marta diz que parte do seu trabalho de campo é baseada em informações prévias do parabotânico.

“Os parabotânicos conhecem muito de caule e casca de árvores. Por esses elementos, eles conseguem me dizer: ‘a região provavelmente tem tal espécie’ ou ‘isso aqui provavelmente é da família tal, da espécie tal’. Em último caso, vão me dizer, pelo menos, o nome popular da planta”, explica a professora.

A habilidade que mais impressiona, porém, é a de escalar árvores de mais de 30 metros de altura, sem equipamento de segurança, para coletar plantas que serão estudadas nos herbários.

“Me chamam de ‘rei da peconha'”, brinca Zelão, se referindo a um cinto que os parabotânicos usam em volta dos pés para facilitar a escalada dos troncos. Herança dos indígenas, a perigosa escalada com peconha é passada dos mais experientes para os parabotânicos mais novos.

Como se forma um parabotânico

Até os 30 anos de idade, Zelão trabalhou na roça no interior do Amazonas, às margens da BR-139. Um dia, um vizinho que prestava serviço como mateiro para o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) lhe chamou para trabalhar abrindo trilhas.

No Inpa, Zelão conheceu uma ornitóloga alemã que havia se mudado para Manaus para concluir um doutorado sobre pássaros da Floresta Amazônica.

“Ela me chamou para ajudar a montar redes nas árvores, usadas para pegar pássaros. Eu disse: ‘não, vou te atrapalhar, não entendo disso’. Mas ela insistiu, disse que me ensinaria. Observei ela trabalhar por meio dia, depois falei: ‘deixa comigo'”, lembra.

Cerca de um ano depois, professores do Inpa ofereceram um curso para treinar mateiros a auxiliar pesquisadores em campo.

“De dia, a gente ia para a floresta coletar folhas, casca de árvore, fruto… De noite, tínhamos aula com os professores, que nos ensinavam sobre o que tínhamos coletado”, conta Zelão.

O parabotânico se orgulha ao falar que, atualmente, é um profissional disputado entre os pesquisadores. “Este ano, só tenho folga dia 20 de dezembro. Até lá, já estou comprometido com outras cinco expedições”, diz.

Cumplicidade com pesquisadores

Não são somente os parabotânicos que aprendem com os pesquisadores, o inverso também acontece.

É o caso da professora Marta, que aprendeu a andar na floresta com o parabotânico Kleuton Moraes da Silva, de 45 anos. Ela nunca tinha entrado na floresta até se mudar do Rio Grande do Sul para Manaus, há cerca de 15 anos, para fazer mestrado e doutorado no Inpa.

“O Kleuton foi um dos primeiros a me acompanhar, eu não conhecia nada. Ele abriu trilhas para mim, me ajudou a coletar, a pensar sobre a floresta”, conta Marta.

Juntos, o parabotânico e a pesquisadora já realizaram seis grandes expedições, nas quais desceram o rio Urubuí (AM) remando em um bote por três dias, acamparam na floresta, navegaram pela Reserva Florestal do Jaú com uma voadeira por 15 dias, dentre outras aventuras.

“Se não fosse o Kleuton, eu não faria umas coisas dessas. Assim como o Paulo Boca e o seu Zé Guedes, outros dois grandes parabotânicos, Kleuton é fundamental para as minhas pesquisas”, afirma a professora.

Paulo Apóstolo Costa Lima Assunção, o “Paulo Boca”, um dos mais respeitados parabotânicos, morreu de covid-19 em janeiro de 2021, e José Guedes se aposentou no ano passado. Kleuton foi treinado por Paulo Boca e Zé Guedes 20 anos atrás.

“Eles sempre andavam coletando pelo Parque Nacional do Jaú. Como eles já tinham idade e quase não existiam parabotânicos naquela época, eles começaram a chamar gente nova como eu para dar cursos de identificação, escalada, essas coisas”, conta Kleuton.

Na época, elen tinha apenas 16 anos e trabalhava fiscalizando o Parque Nacional do Jaú, onde observava cientistas do Inpa pesquisarem no local.

“Eu ouvia os pesquisadores falarem os nomes científicos em latim e achava bonito. Comecei a me interessar em aprender sobre família e gênero das plantas”, diz.

Aos 24 anos, Kleuton fez a sua primeira grande expedição científica como parabotânico – e não parou mais. “Já coletei plantas raras. Foi uma festa quando consegui descer da árvore com elas”, lembra o parabotânico. Algumas de suas coletas estão em herbários da Europa e dos Estados Unidos.

Pau para toda obra

Em junho, Marta integrou uma expedição científica de um mês pelas florestas isoladas do rio Manicoré, no sul do Amazonas, organizada pelo Greenpeace Brasil.

“Promovemos uma plataforma temporária para que pesquisadores ligados ao Inpa, entre outras instituições, desenvolvessem pesquisa e coleta de espécies na região do rio Manicoré, local de alta biodiversidade, mas com vazio de coletas biológicas. Listado nas áreas prioritárias para conservação, a região ainda não está protegida por lei”, explica Rômulo Batista, porta-voz da Campanha da Amazônia do Greenpeace Brasil.

A plataforma temporária de pesquisa era um barco de três andares ancorado às margens do rio, para onde as equipes voltavam da mata no fim do dia para tomar banho, se alimentar e dormir.

Para auxiliar os pesquisadores, a expedição contou com mateiros e pilotos de voadeira (canoa de alumínio movida a motor) de comunidades ribeirinhas locais, cozinheiros e uma enfermeira, além dos parabotânicos Zelão e Kleuton. Os dois chegaram dias antes para reconhecer a região, abrir trilhas na floresta e instalar câmeras no alto e na base das árvores usadas para registrar mamíferos.

“Expedição nunca é fácil, mas essa foi um hotel cinco estrelas. Quando chegamos, já estava tudo pronto”, diz uma professora do Inpa. Ela conta que, por falta de verba, as equipes que vão a campo costumam ser reduzidas e dispor de poucos recursos materiais.

“Essa estrutura é o ideal, mas ainda é um luxo diante do orçamento que temos nas universidades. Geralmente, vamos com o parabotânico e fazemos tudo ao mesmo tempo: abrimos trilha, identificamos a área, coletamos, etc.”, diz Marta.

Diante da falta de verba para as expedições na floresta, a figura do parabotânico é parte essencial tanto para as pesquisas na Amazônia quanto para a vida dos pesquisadores.

“Não existiriam mestres e doutores em botânica na Amazônia sem os parabotânicos”, diz Francisco, um botânico peruano que integra a equipe da professora Marta.

“Eles são nossos guias e salva-vidas”, concorda a bióloga Tamires, orientanda de Marta.

Escassez de parabotânicos

Técnicos de campo experientes como José Raimundo e Kleuton estão acabando, contudo.

“Existem menos de 20 parabotânicos, e não temos uma nova geração sendo formada. É muito difícil encontrar um disponível, principalmente depois da pandemia. Quase não conseguimos nenhum para a expedição no Manicoré”, diz Marta.

Kleuton conta como a pandemia de coronavírus impactou os parabotânicos: pelo menos sete colegas morreram de covid-19 ou abandonaram a profissão desde 2020.

“Ficamos sem trabalhar por dois anos. Não foi pior porque pesquisadores do Instituto Max Planck [da Alemanha] e do Inpa nos deram uma ajuda de em torno de R$ 700 por alguns meses”, diz Kleuton.

Por não serem contratados pelos centros de pesquisa, os parabotânicos costumam trabalhar na informalidade, sem emprego fixo, ganhando por diárias no valor de R$ 200 a R$ 400, dependendo da dificuldade da área.

Ajuda para desvendar Amazônia desconhecida

Estima-se que metade da Amazônia brasileira ainda seja desconhecida de pesquisadores. “As áreas que conhecemos são pequenas e quase sempre estão concentradas próximas às capitais. Não estamos nem perto do ideal de coletas para afirmar que conhecemos minimamente a Amazônia”, afirma Marta.

Para ajudar a capilarizar as pesquisas pela floresta, Marta e colegas da UEA planejam criar um curso técnico para ensinar moradores interioranos a identificar espécies, coletá-las, secá-las e enviá-las para os institutos.

“Se tivéssemos parabotânicos bem treinados nos municípios, eles poderiam ser nossos apêndices. Seria possível enviá-los a campo sozinhos para fazer as coletas. O pesquisador não precisaria ir à campo, o que agilizaria muito o trabalho”, diz a botânica.

Em fase de negociação com a reitoria da universidade, o objetivo é criar um curso que não exclua pessoas sem ensino médio. “A maioria dos parabotânicos teve pouco estudo. Tem parabotânico analfabeto, mas com um conhecimento muito grande da floresta”, afirma a professora.

Zelão também tem planos para o futuro do ofício: buscando melhores condições de trabalho e formar uma nova geração, ele e colegas querem abrir uma associação em Manaus. Por enquanto, o parabotânico tem dois alunos: os filhos de 19 anos e 21 anos. “Ah, se Deus quiser, vão seguir o pai”, diz, orgulhoso.

Dom Total

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